2018-10-05

Venom - uma crítica sem spoilers

Antes de mais, conheçamos as nossas limitações: eu sou perfeitamente capaz de criticar este filme sem spoilers; eu não sou capaz de criticar um filme do Venom desapaixonadamente. Ó pá, desculpem, mas eu nunca não adorei o Venom*. Adoro tudo o que a personagem é; adorava ter esses poderes em particular, com todas as suas desvantagens e fraquezas e tudo; e, quando era pequenino, mais que uma vez dei comigo a pensar, sem qualquer crença, para me reconfortar a mim mesmo, "quando eu tiver um simbiote como o do Venom eles hão de ver...!" (a minha infância teve uma série de partes difíceis). Mas, conhecendo-me como me deveis conhecer, sabeis que isso não lhe dá licença para anhar; aliás, incumbe-o da responsabilidade de ser excelente todos os dias da semana e duas vezes aos sábados e domingos, ou enfrentar a cólera da minha língua viperina - ou, neste caso, dos meus dedos viperinos (o que não faz grande sentido, uma vez que as víboras não têm dedos. Anyway...)

Não é spoiler nenhum dizer-vos que este filme, produzido pela Sony, surge de um panorama "político", peculiar, ao abrigo do qual o Homem Aranha não pode ser mencionado, o que cria um problema grave à partida. Um filme do Venom sem o Homem Aranha é como...

(Não julgueis que me faltam as palavras para fazer uma comparação adequada; pelo contrário, tenho tantas palavras que tereis que escolher as que ressoarem melhor convosco)

 - Um filme do Ringo Star sem os Beatles;
 - Um filme do Steve Jobs sem o Steve Wozniak;
 - Um filme da Kerrigan, Queen of Blades sem os Zerg;
 - Um filme do Joker sem o Batman nem o Heath Ledger (acredito piamente que, antes de falecer, o Heath Ledger (requiescat in pacem) era perfeitamente capaz de sustentar um filme a solo do Joker) ;
 - Um filme do Companhia sem o Batatinha.

(algumas destas referências são menos tópicas que outras)

Assim sendo, fica uma certa impressão de que os guionistas não compreendem devidamente a personagem. Mais preocupantemente, mesmo concedida a tolerância de que certas verdades têm que ser modificadas para respeitar as regras do acordo vigente entre a Sony e a Disney, as personagens frequentemente falam em violação directa do que está estabelecido nos comics há mais de 20 anos. Apesar disso, surgem referências a momentos obscuros da historia canónica do Venom, o que não é característico de quem não compreende a personagem. Neste filme, o Venom não se balança por entre os edifícios em cordas de teia, como o super-herói que não pode ser mencionado, o que eu acho que é uma parte muito importante da personagem, mas, sinceramente, não senti falta (e isto não é mais spoiler que dizer que o Deadpool não decapita o Batman com o sabre de luz do Darth Vader neste filme). Interrogar-se-ão agora, talvez, como é que a personagem se auto-denomina de Venom, proibido que está de proclamar "you are the Spider and we are your Venom": esse e outros pormenores surgem sacados do éter como parte da mise-a-faire, rapidamente ultrapassado para doer menos e seguir em diante.

Despachadas que estão as queixinhas miudinhas, tenho a dizer que o argumento não é mau, se bem que também não se compara à história que não pôde ser contada. No entanto, os actores portaram-se muito bem, e o veterano Tom Hardy, que já tinha merecido o meu respeito e admiração várias vezes no passado, faz um trabalho excelente, particularmente ao exacerbar a diferença entre o Eddie Brock e o simbiote que se une a ele, já que faz ambos os papéis. Os demais actores deste elenco principal muito reduzido (já mencionei que o panorama político de onde este filme é oriundo é algo peculiar? Pois o panorama financeiro não é melhor...), apesar de menos conhecidos que o próprio Tom Hardy, não deixam de se portar muito bem, ainda que deixem assaz claro que estão lá maioritariamente porque o Tom Hardy não pode fazer os papéis todos do filme.

Os efeitos visuais são um pouco difíceis de caracterizar em termos de realismo. Se, por um lado, procuram retratar objectos alienígenas, e, por definição, inacreditáveis, então têm os meus parabéns; se, por outro lado, procuravam convencer-me de que o Venom existia e estava mesmo lá, então lamento, mas ficaram algo aquém... O aspecto do simbiote sem o hospedeiro humano, bem como a maneira como se mexe, são, mais uma vez, diferentes de tudo o que já tínhamos visto, mas, apesar de resultar bastante bem, não chegam ao mesmo nível das suas contraparte da malograda ter eira vez que o Tobey Maguire envergou as teias.

A cena de pancada climática do filme, sem a qual não poderia ser, passou de algo genérica para uma confusão ininteligível de imagens geradas artificialmente, sem nenhum dos momentos "fuck yeah!" que polulam nos filmes da Marvel (da Disney). Finalmente, direi que existia alguma qualidade inefável na fotografia do filme que me desagradou continuamente, ou talvez o mesmo se deva à estética do filme, caso em que admito que o mesmo efeito tenha sido deliberado, o que se prenderia directamente com elementos do argumento (acerca dos quais nada direi).

Em jeito de conclusão, direi que o filme me deixo um pouco desapontado, o que é uma enorme pena, porque tudo o que fez bem fez muito bem, e tudo o que fez mal poderia facilmente ter sido reparado entre os recursos e as propriedades intelectuais da Disney. Aliado à vergonhosa interpretação do Venom no terceiro filme do Sam Raimi, a mensagem que, perante mim, emerge clara e cristalina como a água é "pára com isso, Sony, e deixa a Disney fazer os filmes da Marvel".

Mas, mesmo assim, recomendo. Reconheço que a maior parte das falhas que aponto a este filme advêm sobretudo da paixão que tenho pela personagem, e um espectador menos fanático que eu é capaz de ver um filme de acção engraçado com um protagonista espectacular.

Pax vobiscum atque vale.

* Deixemos imediatamente claro que o Venom que eu sempre adorei é o Venom Eddie Brock. Os fãs do Homem Aranha saberão melhor que eu que, desde o hospedeiro original, o simbiote já passou pelo Mac Gargan (outrora um vilão chamado Scorpion que não dizia "get over here", pelo menos não com a mesma frequência que um certo ninja morto-vivo que eu cá sei) e agora, creio, está com o Flash Thompson, mas estas cópias pálidas do Venom, para mim, não contam.