2017-04-10

As escolas fazem mal à democracia #Brexit

Isto o chuveiro é realmente um excelente lugar de contemplação... Aqui há dias, ocorreu-me o seguinte:

No Reino Unido andam às turras por causa do Brexit, apesar de o Brexit ter sido aprovado pela maioria do povo. Na América, andam às turras por causa do Trump ser presidente, apesar de ele ter sido legalmente eleito*. E eu só me pergunto, "Então mas essa tropa, depois de ter votado e de ter perdido, vem agora fazer barulho? Isso não era coisa para ter sido feita antes da votação?"

Porque, afinal, vejamos: Não visa a democracia ser o sistema mais justo de governo, mediante o qual cada cidadão, igualmente representado no acto do voto, respeita e acata a decisão da maioria? Com que legitimidade é que fulano me vem dizer que cicrano é um fascista quando cicrano foi devidamente eleito?

Aceito que me digais que quem votou numa opção ou noutra tem o direito de mudar de opinião, mas não concedo a ninguém o direito a mudar o voto**.

Se calhar, a esta altura estar-se-ão a interrogar, "Então mas que raio tem a escola a ver com isto?". Ora bem, quando eu andava na escola lia bandas desenhadas do Homem Aranha e ia às aulas (não ao mesmo tempo). Nas aulas, às vezes, tínhamos o direito de votar numa lista ou outra para a associação de estudantes. Eu nunca me meti nessas políticas, sobretudo porque nunca ninguém me soube explicar exactamente para que é que servia a associação de estudantes****, de tão entusiasmada que estava toda a gente com o prospecto de umas dispensas ocasionais das aulas para tratar dos assuntos da associação. Ora eu, mesmo não gostando lá muito das aulas, não via que valesse a pena estar a meter-me de cabeça numa embrulhada desconhecida para poder faltar impunemente. Em consequência do mesmo (entenda-se, de não se saber muito bem para que é que servia a associação de estudantes), as "campanhas eleitorais" de cada lista consistiam em tocar música muito alto, distribuir autocolantes e guloseimas variadas e, se os membros ou apoiantes não se importassem de contribuir, reunir umas consolas e umas televisões pequeninas para aliciar os eleitores, mas nem um vestígio dos seus valores, das suas prioridades ou das suas propostas. Posto isso, a decisão eleitoral recaía sobre factores secundários idiotas, como sejam "qual é a lista que tem mais amigos/colegas meus", "qual é a lista que mais colegas meus apoiam", "qual é a lista que me deu mais ou melhores rebuçados", "quem é que me bate se eu votar numa lista ou noutra".

Quando cheguei ao Liceu, já havia alguma maturidade. Por exemplo, havia debates entre as diversas listas proponentes*****, mas o ênfase do que era a associação de estudantes continuava tão longe das actividades da associação de estudantes que, em determinado ano, pelo menos um colega meu, julgando estar isento de reprovação por faltas desde que faltasse "por motivos de campanha eleitoral", deixou-se "tapar" a todas as disciplinas, e só não reprovou antes das férias da Páscoa porque a Directora de Turma o foi buscar ao recinto do recreio para lho dizer. Quando lhe perguntávamos por que é que ele queria ser parte da associação de estudantes ou o que é que ele pretendia fazer se fosse eleito, ele dizia-nos que não queria saber; que só estava nestas andanças para poder faltar à vontade******.

Ora, sucede, como já mencionei, que lia o Homem Aranha. Infelizmente, a mesma escola que nos encorajava a decidir o nosso voto arbitrariamente e de maneiras parvas, para elegermos uma lista que não queria saber ou uma lista que queria era baldar-se, não nos mandava ler o Homem Aranha. Lá "Os Maias" e "Os Lusíadas" e "Frei Luís de Sousa", tudo muito bem; agora o gajo ágil que rebenta ladrões, manda piadas e não é o Deadpool, népia!

E fazem mal! É que o Homem Aranha teve uma vez um tio que se chamava Ben e fazia arroz num instante, e que antes de morrer lhe disse que "com grande poder vem grande responsabilidade". Olhemos então para a palavra "Democracia": resulta da composição de dois étimos (ou palavras-raíz) gregos (que, de resto, também é onde foi inventada a própria democracia), a saber, demo, e kratos. "Demo", longe de ter a ver com versões muito reduzidas de jogos ou de figuras religiosas judeio-cristãs, significa "povo" e "kratos" significa "poder". Para além disso, se googalizarem "kratos", surge isto:


Quereis convencer-me que, com um burgesso destes, não vem grande responsabilidade? Se ao povo é dado o poder de decidir o destino de uma nação, é-lhe igualmente incumbida a responsabilidade de saber o que raio está a fazer, e não é isso que a escola anda a treinar sucessivas gerações de eleitores para fazerem.

Então surge o Brexit (por exemplo). É claro que o Zé Maria Pincel, que, no 9º ano votou na Lista C, apesar de a miúda de quem ele gostava estar na Lista B (mas o Paulo Rego dava-lhe uma porrada de criar bicho se ele não votasse na lista dele!), e que no 12º ano votou na Lista X porque uma das miúdas vinha identificada nos panfletos como "Bomba", que era a alcunha dela, e ele achou piada, face ao prospecto de votar contra ou a favor de se deixar a União Europeia vai olhar para a cara do Cameron, para o corpo da May e arrepiar-se todo de medo do Farage (ou então por outra ordem qualquer; não estou aqui para o julgar... pelo menos, não por isso), e só depois dos votos estarem todos contados, se de todo, é que vai fazer contas à vida e perceber que votou bem/mal.

Eu até tinha ganas de propor que o voto não fosse o direito de nascença de qualquer cidadão, mas antes um privilégio conseguido à custa de se informar junto de pelo menos dois partidos, mediante sessões de formação gratuitas disponibilizadas pelos próprios partidos, que, afinal, não recebem tão pouco dinheiro do estado para que possam alegar não ter verba, mas imediatamente alguém se ia lembrar de uma maneira simples e eficar de subverter o sistema, e depois eu remendava o sistema nesse ponto específico, uma vez e outra, e outra, e outra, e, antes de dar por ela, estávamos num regime absolutista à lá George Orwell com influências de Starship Troopers e Ayn Rand, mas que era uma democracia porque uma oligarquia não específica tinha o direito ao voto. Portanto, mais vale nem pensarmos muito nisso.

Está bem que isto não impede deshonestidades como a do próprio Nigel Farage, que andou a pintar nos autocarros todos de Londres que o Reino Unido pagava quanto pagava à União Europeia em vez de injectar a mesma quantidade no seu próprio sistema nacional de saúde, e quando o povo quis sair, "revelou" que nunca teve a menor intenção de fazer exactamente o que sugeria nos autocarros e que quem votou nessa premissa fez mal... Ou será que não?

E só para que não fiqueis a julgar que, assim que se chega à universidade, estas imbecilidades desaparecem, recordo-vos que mais que uma vez entrei no DETI, sem saber tratar-se de dia de eleições, e imediatamente descobri uma mesa de voto, munida de "boletins de voto" (que eram vulgares rectângulos de papel colorido, não particularmente bem cortados) para três cargos diferentes, havendo apenas uma única lista candidata aos três cargos. Se achais que encenar eleições para um cargo para o qual só há um candidato não é uma paródia doentia do conceito de democracia, sabei igualmente que:

1. Um voto em branco ou nulo não conta contra a única opção;
2. Mesmo um candidato ou uma lista que concorra sem oposição precisa de um número mínimo de votos para ser eleito. Para além disso, o cargo não pode ficar desocupado. Isto deu azo a que, pelo menos uma vez, uma pessoa se tenha candidatado a determinado cargo sem oposição, mas a votação ocorreu num dia em que não havia muita gente no IEETA (não foi no DETI, mas ao lado...), já que as aulas já tinham acabado e os exames já pouco mais duravam, e que não tinha sido anunciado como tal (para variar). Como resultado, o candidato em questão "teve" que andar a telefonar a toda a gente que conhecia com o direito a votar, a pedir-lhes que viessem extraordinariamente ao campus, alguns já em férias, para lançarem o seu voto, caso contrário... ninguém sabe bem o quê, já que não havia adversário que ganhasse nem o cargo podia ficar vazio... Democracia!

Pax vobiscum atque vale.

* - Antes que alguém se lembre de dizer que não, que a Rússia e o Putin andaram a roubar as passwords do Facebook da Hillary e a viciar os resultados, só para outrem o/a lembrar de quem é que foi o primeiro a afirmar que aceitava, sem contestar, os resultados das eleições, guardemos essas conversas para proeminentes fóruns políticos como sejam o Twitter, o Instagram, o Facebook e o /pol/ e vamos antes discutir assuntos sérios.

** - Aceito sistemas de voto múltiplo, como o voto único transferível, por exemplo. Procurem no Youtube, no canal CGP Grey***, por "Single Transferable Vote".

*** - Claro que recebo uma comissão por cada clique nos vídeos do canal; não se está mesmo a ver que sim...? Ninguém se lembre de ligar o ABP!

**** - Escusam de me dizer agora; continuo a não saber, mas também já não interessa...

***** - Isto passou-se: em determinado ano, um aluno mais velho, membro de uma lista, acusou a lista rival, que se mantinha largamente a mesma desde o ano anterior, em que tinha sido eleita, de não ter cumprido as promessas que tinha feito durante a campanha, omitindo convenientemente o facto de, no ano anterior, ele próprio ter feito parte da associação de estudantes. Esse colega veio a estudar em Aveiro, em ECT.

****** - Se calhar acham que está aqui uma simile muito engraçada de um "proto-deputado", que quer é o tacho na Assembleia da República e não faz a menor ideia sequer do que é que devia estar a fazer, e que é por isto que as escolas fazem mal à democracia. Mas não é só...