2016-07-03

Mesa de Lemos - Uma Crítica

Antes que os meus estimados colegas e amigos se interroguem "mas que diabo de filme ou jogo vem a ser esta "Mesa de Lemos" de que nunca ouvi falar?", sabei que se trata de um restaurante perto de Silgueiros. Esclarecido isto, segue-se, à maneira da miríade de sites de críticas de lojas, serviços e produtos variados, um título:

O lugar mais pretencioso do mundo:

Em poucas palavras, é um lugar que se orgulha de ser deliberadamente obtuso, um sítio que extrai um prazer perverso em obrigar a que tudo seja feito da maneira mais difícil. A maior parte de vós conheci num ou noutro curso de engenharia, onde o mantra reflecte que a solução mais simples é, geralmente, preferível; apresento-vos, portanto, a antítese do nosso credo:

É esta a parte onde, geralmente, eu postaria uma fotografia da fachada do restaurante. Infelizmente, não tenho nenhuma, e eis por quê: Sabendo que teria um desastre desta proporção para documentar, teria fotografado o edifício ao entrar, às 8 da noite do segundo dia de Julho no hemisfério norte, quando a luz se proporcionaria a tal tarefa. Infelizmente, quando de lá saí, às 11 da noite, tendo comido três pratos, já não havia luz de que falar. Tereis, portanto, que vos contentar com a minha descrição.

Imaginai-vos numa estrada secundária de campo, onde as tabuletas são escassas e dispersas, e ocasionalmente pejadas de palavras bárbaras que podem ou não se relacionar com o destino que procurais. Tomara eu ter-me achado nessa posição enquanto navegava precariamente os caminhos de terra e pedra que serpenteiam por entre as vinhas da Quinta de Lemos. Eis então que encontro um edifício! É lá que me dizem que não é aquele edifício que eu procuro; esse está enterrado três vezes mais profundamente nas vinhas (em mais que um sentido).

Findas mais umas voltas sinuosas entre sinalização escassa e pavimento quase inexistente, encontramos o restaurante: uma longa fachada de vidro e betão escavada na própria rocha da colina.

Permiti-me o interlúdio de uma crítica que mais se assemelha a uma censura para reconhecer que, sim senhor, estava bonito, de uma maneira minimalista e rústica, quase grosseira, que deixa desnudos o betão e a pedra.

Torna-se agora necessário estacionar o carro. Enquanto a vasta multitude de restaurantes prenuncia a própria porta com amplos estacionamentos, de onde não surge maior inconveniente, à saída do carro, que atravessar uma superfície plana e asfaltada, a Mesa de Lemos opina que ainda não percorrestes suficientes contracurvas por maus caminhos e manda-vos numa demanda para deixardes as vossas viaturas não diante do restaurante, nem sequer ao lado ou por detrás do restaurante, mas antes sobre o mesmo. Uma vez desembaraçados da responsabilidade de abandonardes o vosso veículo apenas onde não cause transtorno a outros automobilistas, espera-vos um caminho íngreme, de terra pejada de pedras crudes e bojudas até à porta do restaurante. Caso a inclinação vos desargade, podeis igualmente percorrer o caminho por onde lá chegastes, que, se é menos íngreme, é igualmente mais longo, e pejado mas mesmas pedras, acrescidas agora de outros condutores que, tal como vós, só querem estacionar. Caso tenhais tido a ideia de levar saltos altos, meus caros, estais na mata sem cachorro (desta dificuldade não falo empiricamente, mas a minha mãe poder-vos-ia ter contado, se não estivesse concentrada em, mesmo empoleirada no meu ombro, não cair).

Concluída a gincana de chegardes à porta, recebe-vos a Maîtresse D'. Podereis, agora, interpor que ela não parece ter tido dificuldade em chegar ao restaurante, apesar do caminho ingrato, mas deixai-me dizer-vos duas coisas:

1. Havia espaço para um único e solitário carro num recanto macadamizado, diante de uma porta para empregados.
2. A Maîtresse, não obstante a elegância do seu traje e do seu porte, usava sapatilhas. Sapatilhas desportivas. Num restaurante gourmet.

Queria agora citar uma passagem de um livro que toda a minha vida eu achei muito bonito:

"hipocrisia - substantivo feminino; devoção fingida."

Apesar do sorriso pronto, a Maîtresse não nos leva imediatamente à nossa mesa: como tínhamos, originalmente, feito reserva para três pessoas (um dos comensais não se pôde juntar a nós), mandou-nos esperar, e não foram os escassos segundos que demora afastar uma cadeira de uma mesa (antes que vos lembreis de argumentar que seria igualmente necessário re-organizar os pratos, talheres, copos e guardanapos, devo dizer-vos que nenhum desses objectos está na mesa quando sois conduzidos à mesma).

Finda a espera, fomos trazidos à nossa mesa. Ainda que não nos chocasse vê-la inteiramente despida, senão pela toalha e um castiçal, esperávamos ver ementas, mas tal estava reservado para mais tarde. Primeiro, mas não imediatamente, segue-se o que é chamado de "um ritual" - e esta parte não é, tanto quanto eu sei, opcional. O ritual consiste em serdes presenteados com um bloco de granito, sobre o qual repousa um toalhete húmido com que "lavar" as mãos (e, até aqui, tudo bem), uma taça com gravilha e algumas folhas sortidas (e, em defesa da mesma, era uma taça dodecaédrica bem bonita, que eu teria todo o gosto em ter em minha casa como centro de mesa) e dois copos de água fresquinha. Segue-se um discurso fátuo acerca da água, a qual é classificada como um "elemento" - senhores, sabemos hoje que o Platão substimou em muito tanto o número como a natureza do que designou por "elementos". Então, de um jarro, entorna água sobre a gravilha da taça, revindicando que tal simula adequadamente uma cascata, e convída-nos a desfrutar da água da Serra da Estrela que nos serviu - porventura porque não se apercebe que a mesma está comercialmente disponível numa multitude de superfícies e de que quem se dá ao luxo de comer em restaurantes gourmet pode, igualmente, mimar-se em sua casa com um método de refrigerar líquidos, outras bebidas, géneros alimentares e mesmo qualquer objcto que caiba no malvado frigorífico - eis a exclusividade dos restaurantes finos. Estou tentado a elogiar a escolha do dodecaedro como forma da taça, uma vez que o seu dual, o icosaedro, fora associado por Platão à água, mas recordo-me de outros patronos brindados com o mesmo ritual, com uma taça cúbica. Ainda que nunca dois "rituais" tenham decorrido em simultâneo. Homens, podíeis ter usado a MESMA TAÇA!!!

(tem calma, tubarão; tu não te desgraçes...)

OK, continuando... Ressequidos do calor da tarde e do sol que vos banhou no caminho até ao restaurante, é este o momento de apreciardes a água fresquinha, mas apenas até que vo-la tirem, ainda antes de verdes o menu. Quando, finalmente, vos trazem o menu, espera-vos um enigma: Da capa de cartolina dobrada ao meio caem quatro tiras de papel que, visto à transparência, têm a filigrana "conqueror". Não deslindo que relação tem a palavra com a Mesa de Lemos. Cada uma das três primieras tiras lista um número de pratos (a primeira três, a segunda cinco e a terceira sete), seguidos de um preço. A quarta tira lista todos os pratos das anteriores, acompanhando cada um do seu preço.

Eis o esquema: tendes o direito de escolher qualquer um dos três menus pre-concebidos, contentando-vos com a escolha da combinação entre entradas, pratos principais e sobrememsa. Não tendes o direito de prescindir ou substituir elementos, mas, desde há pouco tempo, é-vos dada a benesse de encomendar à lá carte, desde que estejais dispostos a pagar uma sobretaxa por cada prato - multa por não terdes os mesmos gostos que o Chefe Diogo.

Falo agora do nome dos pratos, porque é uma queixa comum da cozinha gourmet que produz pratos com nomes demasiado elaborados e pouco explícitos. Preparei, portanto, uma selecção sortida de nomes de pratos gourmet de outros restaurantes:

          "Brandy flamed peppercorn steak" - Convenhamos que a única dificuldade do nome aqui é saber falar inglês. Ultrapassado esse obstáculo, parece-me evidente que se trata de um bife incrustado com grãos de pimenta e flamejado com Brandy.

         "Blue cheese crusted filet Mignon with Port wine sauce" - Novamente, basta conhecer as palavras para saber que se trata de uma peça de carne cortada da ponta mais delgada do lombo com uma crosta de queijo azul e molho de vinho do Porto.

(Se vos estou a fazer fome, lembro-vos que o Chefe Rui Paula tem um excelente restaurante gourmet, na margem do rio Douro, chamado DOC).

          "Escargots à la Bourguignonne" - De acordo, este traz a dificuldade acrescida de que, se não souberdes que "Bourguignonne", neste contexto, significa grelhados em manteiga de alho e ervas, não é por sberdes falar francês que sabereis mais que que tratar-se de um prato de caracóis.

          "Telha de queijo com espargos fritos em azeite virgem" - Comi este no DOC. Uma delícia!

Segue-se agora ta listagem de todos os pratos de que me lembro da Mesa de Lemos (mais uma vez, dependo apenas da minha memória):

          O Acolhimento.
          O Tomate.
          O Coelho.
          O Atum.
          O Bacalhau.
          O Salmonete.
          O Imperador.
          O Bovino.
          O Cabrito.
          O Pudim.
          O Melão.
          Os Frutos Vermelhos.

Nesta altura do campeonato (por falar nisso, semi-finais, hem!?) já estou disposto a aturar a mania de preceder um ingrediente com um determinante artigo sintaticamente adequado, mas semanticamente desnecessário. Afinal, até o Chefe Rui Paula se lembra, ocasionalmente, de chamar a um prato "O porco bísaro feito assim e assado" (claro que não é "feito assim e assado"; o nome dá a entender o que diabo se está a pedir), mas isto é ridículo! Não fosse cada prato seguir uma designação da sua origem (que é, por vezes, tão útil como dizer-nos que o tomate - perdão, O Tomate - vem da horta e O Atum vem do mar), não saberia que O Pudim é suposto ser pudim de abade de Piriscos (deduzo, se bem que a revindicação do menu é que O Pudim vem de Piriscos, sem qualquer referência a membros do clero) e que O Melão é de Almeirim e, portanto, em princípio, não um membro de uma Boys Band portuguesa do final dos anos '90.

Nesta altura podereis querer saber que diabo vêm a ser os pratos aqui listados, mas devo advertir-vos contra colocar a mesma questão - trata-se de um tabu que, por violardes, sereis condenados a explicações lacónicas e inúteis de dúvidas que não pusestes, seguidas de redireccionamentos para outros membros da equipa do restaurante, promessas de confirmição com o Chefe e o inevitável desapontamento quando as mesmas promessas forem quebradas, resultando apenas em MAIS E MAIS ATRASOS E ESPERAS!!!

(olha a tua pressão arterial, tubarão!)

Pronto, passemos adiante. Pela minha parte, pedi O Acolhimento, O Atum (que era entrada), O Bacalhau e O Pudim. Julgo inevitável seguir com a cena hipster do Instagram de postar as fotografias do meu jantar de ontem, mas, com as minhas desculpas (não só pela prática mas também pela qualidade das fotografias - mas entandam que eu não levo máquinas fotográficas DSLR para os restaurantes e que não tiro fotografias com o telemóvel com frequência suficiente para o fazer em condições sempre), este desastre merece ser devidamente documentado.

O Acolhimento consiste em quatro pratos, servidos um de cada vez sempre e só quando um poder superior acha oportuno. E entre servir-nos cada prato e deixar-nos comer o prato em paz, o chefe dos empregados brinda-vos com uma extensíssima descrição de cada prato que, por algum motivo, não podia ter revelado ANTES de o terdes pedido, quando lho peguntastes repetidamente, enuncaindo cada iteração de forma diferente, tentando, desesperadamente, ouvir aquilo com que o homem AGORA NÃO SE CALA. O primeiro consiste num cepo de madeira, equilibrado no topo do qual repousa uma tacinha, com qualquer coisa comestível dentro:


Sirva-vos a minha mão de escala, e a minha palavra de garantia de que não há cá ilusão: não andei a escarafunhcar no Photoshop para fazer a minha mão parecer maior que o resto (eu disse "mão"), não pus a mão mais perto da lente para a fazer parecer maior e se peguei numa colher de café para comer este ovo de codorniz com ervas foi porque não me foi proposto outro talher (de outra forma, este acepipe não poderia ter durado duas colheradas).

O segundo acepipe:


Repito as minhas anteriores promessas: é esta a verdadeira grandeza do prato comparado com a minha mão.

Nesta altura foi servido o terceiro. Lamento ter-me esquecido de o fotografar - mas estava cheio de fome. Tratava-se de uma molheira com uma mistura de feijão e mexilhão, servido com uma espátula de madeira, como aquelas com que o médico nos recalca a língua para nos ver a garganta, a fingir de talher, colocada diante de mim a apontar para a esqueda, apesar de ter sido cortada na forma de uma colher. Seguidamente:


Peço desculpa de me ter esquecido de um elemento de escala, mas sabei que destes dois objectos, um era para mim e outro para a minha mãe. Ela conseguiu assentar os dentes no mesmo de maneira a fazê-lo render duas dentadas; eu não conseui a mesma proeza de exacidão...

Por quatro dentadas de comida me cobraram €10. As mesmas quatro dentadas me teriam ofereceido se tivesse pedido um menu.

No meu estado de hipoglicémia, esqueci-me igualmente de documentar O Atum. Tratava-se de um cruzamento cru entre o carpaccio e o sashimi (vedes!? Vedes que não é preciso entrar pelo gourmet para arranjar palavras invulgares para a comida!?). Melhor sashimi já comi num restaurante chinês em Viseu que se quis aventurar pelo sushi, pelo que recebeu críticas, na melhor das hipóteses, "tépidas" e muitíssimo melhor carpaccio comi uma vez numa esplanada em Amsterdão que a memória há de apagar. Mas eis O Bacalhau...


E, rezam as lendas antigas, que, se tiverdes fé num homem mágico no céu, encontrareis neste prato pudim de abade de Piriscos.


Esclareço que aquela coisa clara e vagamente capsular no meio do prato é sorvete de ananás. Sabíeis que, em Viseu, havia um tasco chamado "O Cacimbo"? Ficava perto do Liceu, e muitos professores gostavam de lá ir almoçar, porque a comida era rápida, razoável e barata. Hoje, O Cacimbo mudou de instalações e já não é uma tasca; é um restaurante despretencioso, onde o serviço é bom e a comida também, e razoavelmente preçada. Servem um pudim de abade de Piriscos com espuma de lima que, para além de meter este num chinelo, não cabe num chinelo de bebé.

 Não posso igualmente deixar de vos mostrar o prato d'Os Frutos Vermelhos que coube à minha mãe:



Se olhardes com atenção, talvez encontrareis Os Frutos Vermelhos, que eu vos juro que fotografei o prato antes de a minha mãe comer.

Sinto que devia falar da comida, e até era boa; salvo raras excepções, como a do malgorado atum ou do pudim, equanto estive a comer estive contente, mas estive lá três horas para sair dali e ir a ao frigorífico desenterrar os restos do almoço (juro-vos que não se trata de uma hipérbole ou uma fabricação cómica; se assim o escrevi, assim o fiz).

Mas o que mais me irrita é a pretensiosidade com que tudo é feito. Mesmo toques de requinte que, noutro contexto, eu teria achado engraçados (por exemplo, nunca um empregado traz uma bandeja ou mais que um prato, nem nunca um comensal é servido antes de outro na mesma mesa; vêm tantos empregados quantos comensais, cada um só com seu prato, e, se algum chegar à beira do "seu" comensal antes dos outros, espera para que todos os pratos sejam postos na mesa no mesmo instante), me pareciam falsas e irritantes. Algumas chegavam mesmo a estar mal feitas: por exemplo, os empregados usavam uma única luva branca, mas só para os talheres. Ou bem que usam luvas ou bem que não me queiram atirar areia para os olhos com requintes inconstantemente fingidos.

Se bem que merenda feita, companhia desfeita, sair dali é ainda menos fácil que lá chegar, que não há candeeiros que iluminem as ainda sinuosas curvas por entre as vinhas; apenas umas míseras luzinhas ladeiam os caminhos de quando em quando.

Chego agora ao fim da minha crítica. Quereis ainda um veredicto?

Nuke it from orbit!

Pax vobiscum atque vale.
(e bom apetite!)