Para algum dos meus estimados colegas e amigos que viva debaixo de uma pedra, sem Internet, no planeta que gira em torno do Sol na mesma órbita que a Terra, mas do outro lado do Sol, saiu aqui há dias um filme chamado "Captain Marvel" que anda (desde antes de sair, de facto) a gerar burburinho por motivos variados. Chovem por essa internet afora críticas ao filme, ao elenco, ao realizador, ao guião, ao que cada um destes elementos representa, aos fãs do filme, aos fãs do género que não são fãs do filme, ao gato da fulana que limpa as escadas no prédio onde mora o jardineiro que trata das flores do quintal do tio do neto do primo do cunhado do enteado do filho do compadre da cozinheira que tratou do catering da Unidade B da produção do filme, etc., e, a ajuizar pelo que vou vendo, quase todas mordazes.
Ora, como eu já vi o filme e tenho o hábito de fazer críticas de filmes que vou vendo, compreendo-vos se imaginardes que venho aqui fazer a minha própria crítica mordaz, mas não (quer dizer, se quiserdes mesmo muito, ou mesmo só o suficiente para fazerdes um comentário a pedir o mesmo, eu faço o sacrifício de ver o filme outra vez e farei uma crítica a sério tão mordaz quanto quiserdes); venho antes fazer uma crítica a uma das críticas mais comuns ao filme.
Antes que algum de vós fuja espavorido deste post, cheio de medo de spoilers, deixai-me deixar aqui um anti-spoiler alert, ou seja, a minha promessa de que farei o meu melhor por evitar spoilers.
E, nessa nota, começo por revelar um facto pertinente à trama do filme, mas que não revela nem indicia nenhuma surpresa acerca do mesmo: o filme passa-se nesse ano longínquo de mil novecentos e noventa e cinco, em finais do milénio passado.
(Espera lá; a menina que, desconfio, será o mais próximo que eu virei a ter nesta vida de uma sobrinha, não se recorda do ano de 1995 porque só nasceu em 1999... às tantas, não devia ter sido assim tão sarcástico na minha caracterização de 1995 como "longínquo"... afinal de contas, em 1995, ainda sabíamos que 1984 não era um manual de instrucções!)
E, laconicamente, revelarei igualmente que, no final do filme, a protagonista entrega ao ubíquito Nick Fury um dispositivo que lhe permitirá contactá-la em caso de emergência.
Não revelarei mais nada acerca deste filme, mas, conhecendo o Universo Cinemático da Marvel e sabendo apenas o que vos contei, rapidamente emerge esta frequente crítica que venho criticar:
"Então, durante o primeiro «Avengers», esse ladrão do Nick Fury não achou que tinha em mãos emergência suficiente para merecer chamar a Captain Marvel!? Plot hole!"
Se tiverdes lido os parágrafos anteriores com qualquer medida de atenção já devereis ter deduzido que não venho para aqui defender o filme, mas, em prol do que é justo, não considero esta crítica válida. Quando não, vejamos:
Só de ver o primeiro "Avengers", sabemos o seguinte (o raio do filme é de 2012; se ainda não o vistes, o mais certo a não terdes sequer vontade de o ver; nem pensar que vou andar a pisar cascas de ovos para tentar não dar spoilers de um filme com mais de 5 anos): O Fury e a S.H.I.E.L.D. querem, sobretudo, munir-se de meios para se defenderem de ameaças extra-terrestres. Para esse efeito, tentaram replicar as armas que a Hydra tinha empregue na segunda guerra mundial, mas, paralelamente, o Fury quis montar uma equipa que não precisasse dessas armas. Ora, quer seja através de melhores armas, quer seja através de melhores soldados, é estritamente necessário que os meios da nossa continuada sobrevivência sejam intrinsecamente nossos, e qualquer meio do qual podemos dispor sob certas circunstâncias e só por favor não é fundamentalmente "nosso", e também não é grande plano de defesa, uma vez que depende essencialmente de um factor que reside fora do nosso controlo. Por outro lado, com a manobra das cartas ensanguentadas, o Fury demonstra que não só não põe de parte a noção de criar força (e união) entre os Vingadores através do conflicto mas também que o mesmo é uma estratégia eficaz. Semelhantemente, até então, nenhum dos heróis mais poderosos da Terra tinha enfrentado um adversário extraterrestre (com a excepção do Thor, que, mais uma vez, não "pertence" à Terra e cuja permanência na Terra não é garantida), e era necessária uma prova de fogo da equipa de resposta que o Fury andava a tentar montar desde o primeiro "Iron Man".
Podeis argumentar que se trata de uma estratégia demasiado arriscada, e que os Vingadores podiam não ter sido capazes de derrotar o Loki e os Chitauri, mas o espertalhão do Tony Stark, que não perde pitada, no terceiro acto do filme, mesmo sem saber tudo o que estava para trás (ou, no caso, para a frente, dependendo de se o referencial é a cronologia do universo dos filmes ou a cronologia dos filmes conforme são publicados), deduziu a resposta do Fury e deu-a ao Loki (porque em 2012 ainda não havia ninguém a criticar o "Captain Marvel"): "Não há nenhum trono. Não há nenhuma versão disto em que tu ganhes. Talvez o teu exército venha e talvez seja demais para nós, mas é tudo culpa tua. E, se não conseguirmos proteger a Terra, podes crer que havemos de a vingar." (livremente traduzido de memória).
Resumidamente: não é gralha nenhuma que o Nick Fury não tenha chamado a Captain Marvel no primeiro Avengers: ele queria era, por um lado, usar as circumstâncias para instigar união entre os Vingadores e, por outro lado, testar os Vingadores em acção, mas não acredito que se tenha "esquecido" que podia chamar ajuda de fora; aliás, mais que nunca se lembrou que, se o clube de amigos do Capitão América se estatelasse ao comprido nas ruas de Nova Iorque, tinha alguém que podia chamar para os vingar.
Se não acreditam em mim, saquem o filme (sim, isto é um apelo à pirataria), mas uma versão com as cenas depois dos créditos, e reparem bem nas palavras que salientei da citação do Tony Stark.
Dito isto, o filme não é grande coisa...
Pax vobiscum atque vale.