Comecemos inexoravelmente por vos prometer não dar
spoilers. Lede agora sem medo...
Há quase exactamente um ano, na
minha crítica ao "Venom", comparei a improbabilidade de um filme do Venom sem o Homem-Aranha à improbabilidade de um então hipotético filme do Joker sem o Batman nem o Heath Ledger. Ora, o Sr. Ledger, infelizmente, deixou-nos prematuramente, mas o Joaquin Phoenix demonstrou, neste filme, ser um actor nem menos capaz nem menos adequado ao personagem (se bem que a uma encarnação da personagem suficientemente diferente de todas as que já tínhamos visto até agora). Tenho, portanto, de engolir as minhas próprias palavras, mas não faz mal nenhum por dois motivos:
1. Eu tenho excelentes palavras e, para além disso, vou fazendo acompanhar as minhas palavras de
bon mots, o que calha bem, porque um Chablis, por exemplo, seria mal empregado em mim, que não bebo;
2. Valeria a pena ter sido humilhado em praça pública pelas minhas fracas habilidades de vidente para ter o prazer de ver um filme como este.
Mesmo assim, não querendo "fugir com o rabo à seringa", apraz-me dizer que o filme não é inteiramente estanque do imaginário do Cruzado da Capa; apesar da ausência do famigerado vigilante que se estiliza como um morcego, o filme não se priva de fazer algumas referências tangenciais ao Batman, mas não em proporção suficiente que me permita justificar a minha própria soberba de há um ano atrás.
Agora que contextualizei a crítica, convinha contextualizar igualmente o filme (e, desta vez, a ver se não faço comparações parvas que serão contraprovadas daqui a um anito). Começo por dizer que este filme, que eu muito mais depressa caracterizaria como um drama, ao invés de um filme de acção, como é apenágio dos filmes inspirados por bandas desenhadas, é, antes de mais, uma reacção, por parte do realizador Todd Phillips, à cultura "woke" e politicamente correcta que autoritariamente declara que quaisquer críticas negativas às obras que preza não podem senão ser o resultado de um pequeno número de
trolls e não reflecte, de maneira nenhuma, a opinião da maioria; e procura cancelar ou, de outra forma, suprimir (porque "oprimir" é a faculdade exclusiva de homens brancos heterossexuais cissexuais etc.
et al) todas as obras de que não gosta. O próprio Todd Phillips, que, de resto, até agora, era mais conhecido pelos seus trabalhos cómicos, dos quais se destacam "Due Date" e os filmes da série "The Hangover", tem sido citado dizendo algo para o efeito de que o filme "Joker" seja uma riposta à corrente de pensamento que não lhe permite fazer uma comédia nos termos em que gostaria.
Certas entidades, que permanecerão anónimas e incaracterizadas, não querem que vejais este filme, provavelmente não só porque o mesmo contradita variadas crenças que não lhes convém que sejam sequer questionadas, mas também porque o vilão da trama não pode não receber o estatudo de "vítima" que essas mesmas entidades tão sofregamente revindicam para si mesmas, para com ele se protegerem de todas as acusações, mesmo as que não podem deixar de ser justamente lançadas sobre o epónimo Joker, que, aliás, tal como a carta do baralho com a qual partilha o nome, parece encaixar-se em qualquer ponto do espectro político, tomando valores diferentes dependendo das circunstâncias, o que o torna difícil (para não dizer "impossível") simplesmente rotular de "racista", "fascista" ou "homofóbico", como é apenágio dos auto-intitulados "defensores do que é correcto". Desta forma, o filme torna-se uma espécie de "Crime do Padre Amaro" (o livro de 1875; não o filme 130 anos mais recente), na medida em que uma proeminente figura de "autoridade" vos proíbe de o verdes, o que me compele a declarar este como um dos filmes mais importantes da década.
Mas paremos de promulgar o já suficientemente imponente burburinho em redor do filme e falemos do filme propriamente dito: O filme é, inexoravelmente, um produto do seu tempo, pelos motivos que expliquei nos parágrafos anteriores, mas também, por se passar nos anos 80, passa por
period piece, o que resulta, à semelhança de "Demolition Man" (1993), num filme simultaneamente datado e, paradoxalmente, exactamente por isso, perfeitamente intemporal.
A primeira coisa em que reparei no filme foi a sua estética própria, deliberadamente desagradável, na medida em que nenhum objecto ou lugar parece novo, suficientemente limpo, adequadamente mantido ou sequer particularmente bem executado, o que contagia o espectador com o desapontamento e a despondência que afligem o protagonista. Mesmo os objectos que, no âmbito do filme, são tomados como sendo de elevada qualidade, por mera virtude de pertencerem à década em que se passa o filme, parecem, por comparação, inferiores, insuficientes, e insatisfatórios perante os padrões de hoje.
O som é usado de maneira impressionante, quer pelo teor dos efeitos de som, quer pelas escolhas musicais, mas, em minha opinião, sobretudo pela sua mistura, mediante a qual, através do volume e da profundidade do som, transmitre a ideia da distância, menos física que emocional, do protagonista à sua fonte, ora assemelhando-se a um som retratado na televisão para dar a impressão de afastamento, ora tomando as características de um barulho produzido ao vivo para indicar a sua proximidade à personagem principal.
O protagonista propriamente dito é, do princípio ao fim do filme, um exercício de conflicto interno, entre vontade e fisiologia, entre precepção e realidade, entre crença e verdade, e entre ego e id. Em muito poucos momentos do filme ele é caracterizado como uma personagem detestável, sendo até fácil empatizar e mesmo simpatizar com a personagem até ao momento em que o mesmo assume o seu carácter como o vilão que conhecemos há decadas. Ainda a este respeito, direi apenas, atrevendo-me perigosamente perto do território do que seria revelar a mais, que este Joker é tão diferente dos Jokers que o precedem como o Joker do Heath Ledger é diferente do Joker do Jack Nicholson: pela primeira vez, a loucura da personagem está verdadeiramente patente, ao invés de ser quase simplesmente afirmada no caso de "Batman" (1989) ou de contraditada pela lucidez com que o Joker planeia e executa as suas manobras intrincadas em "The Dark Knight" (2008). Para além disso, num certo afastamento do Joker tradicionalmente sanguínio, este Joker é antes melancólico, saturnino (eu posso ter de vir a engolir estas palvras daqui a um ano; deixai-me garantir agora que são boas), e claramente emprega as características mais levianas da face que expõe ao mundo como um mecanismo de defesa contra as emoções que pretende reprimir.
Inversamente ao que seria de esperar de um filme de acção (categoria em que me recuso, apesar da origem da personagem, a colocar este filme), e apesar da presença de cenas de acção, dificilmente seria capaz de chamar as este "um filme violento", o que não significa que as acções mais reprováveis do que não pode senão ser condenado como um vilão sejam devidamente retratadas em excruciante pormenor, apelando por vezes à audição, com ruídos abrasivos e agressivos, por vezes à visão, com imagens violentas e viscerais, e, por vezes, de maneira mais subtil, indiciando a violência exclusivamente através de pistas, deixando os horrores maiores à imaginação do espectador. Ainda assim, neste filme que enfatiza o combate de um homem contra os seus próprios demónios em deterimento da manifestação carnal dos seus desejos destrutivos, as cenas violentas, sem as quais o Joker não estaria devidamente caracterizado, são infrequentes, mas poderosas.
Lembro-vos, antes de finalizar esta apreciação com um único parcer lacónico e dolorosamente insuficiente para resumir um filme desta importância, de que votamos com a carteira, e de que só o vosso apoio (e hoje quero mesmo dizer o apoio que dais pagando um bilhete de cinema) pode encorajar o panorama cinematográfico e, de um modo mais abrangente, da multimédia em geral, na direcção oposta à da distopia dictatorial em que exclusivamente as obras rigorosamente escrutinadas e aprovadas pelo "Partido" são permitidas e "aceitáveis", ao passo que tudo o resto e todas as vozes dissidentes são silenciadas.
Ide ver assim que puderdes. Outra vez, se já tiverdes ido.
Pax vobiscum atque vale.